UM CAFÉ NO SERTÃO
Autor(a): Matheus de Jesus Fernandes
Apoiado na janela do pequeno casebre onde vivia, Sérgio contemplava o amanhecer. O sol erguia-se preguiçoso no horizonte marcado pela vegetação de mandacarus e xiquexiques que cresciam na frente de sua moradia. A areia vasta do sertão apresentava tonalidades rosas, lilás e azuis, refletindo as primeiras cores pintadas pelo crepúsculo. Próximo de alguns arbustos, um preá procurava por algo que Sérgio não soube identificar. No alto, um carcará já sobrevoava em círculos no céu, enquanto seu pio anunciava um novo dia na região da caatinga.
Afastou-se da janela, trazendo consigo o rádio que tocava canções de Dominguinhos, indo em direção à cozinha para o preparo do café matinal. A casa encontrava-se ainda em profundo silêncio. Todos dormiam, exceto ele, que em poucas horas teria que caminhar alguns quilômetros até chegar ao trabalho rotineiro.
Enquanto apanhava o papeiro pendurado na parede, enchendo-o de água para fervê-la, Sérgio refletia sobre as mudanças que lhe ocorrera no decorrer dos anos. Já adicionava o açúcar e o pó de café, no momento em que as reminiscências o evocaram para os tempos longínquos de imprudências da juventude; das aventuras com os amigos de outrora que já não tinha mais notícias;o dia em que conseguira o primeiro emprego e da felicidade que sentira. Lembrou-se do dia em que conhecera a mulher que se tornaria sua esposa; de quando os dois se casaram, fazendo com que Sérgio deixasse a casa em que crescera para ter a sua própria moradia. Recordou-se dos ganhos e perdas, dos inúmeros erros e acertos, das alegrias e tristezas da vida. Por último, via nitidamente através das lentes de sua memória o nascimento dos filhos e de como ficara eufórico, dizendo para si que era o homem mais feliz daquele sertão.
Ao refletir sobre essas coisas, o homem fazia movimentos vagarosos no papeiro, observando seu reflexo e as rugas que surgiam ao redor dos olhos, as pálpebras que começavam a se cansar, reivindicadas pela ação do tempo. Sentando-se à mesa, esfregou os olhos para dissipar o sono, dispondo pães e bolos diversificados para a primeira refeição do dia.
Deu o primeiro gole de café, saboreando a bebida quente. Naquele momento aquilo o fazia feliz, embora não soubesse o porquê. De repente, ouviu arranhões na porta da cozinha que ainda permanecia fechada. Pegou um dos pães, partiu-o ao meio e dirigiu-se à porta. Conforme ia abrindo, as unhas contra à madeira aumentavam de maneira insistente do outro lado. Assim que abriu, Pimenta surgiu em meio à escuridão que dava acesso ao quintal; o rabo balançava freneticamente, enquanto rodopiava alegre ao ver o dono. Afagando a cabeça do cachorro, deu o pedaço de pão que trouxera, enquanto o animal abocanhava vorazmente o alimento.
Sérgio notou que caía uma fina garoa, coisa rara naquele lugar. Aproveitou para inspecionar a pequena horta de cebolinhas, abobrinhas e outras hortaliças que plantara nas últimas semanas. A vida mostrava-se a ele, germinando e exibindo vagarosamente os seus frutos. Tocou na terra úmida, sentindo de modo prazeroso a textura. O homem esboçou um sorriso contente. Olhou para o céu, fechou os olhos e fez um agradecimento silencioso ao Criador. Naquele momento, Sérgio sentia que ele, com a sua horta, seu cachorro e sua família que dormia placidamente era o que havia de mais importante no mundo. Para ele, aquilo era o inestimável, o sagrado.
Voltou à cozinha para terminar o café já quase frio. Pimenta o acompanhou, enquanto exibia a longa fileira de dentes afiados ao se espreguiçar. Sérgio deu o último gole da bebida, verificando o relógio. Estava na hora. Ordenou a comida na mesa, lavou o papeiro e a xícara, desligou o rádio e foi para o quarto organizar as coisas antes de partir. Enquanto fazia tudo em silêncio, parou para observar a esposa que dormia, contemplando-a como se fosse a primeira vez.Aquele seria um longo e cansativo dia para Sérgio, todavia, sabia que ao entardecer, retornaria para sua casa, para o conforto da família. O pensamento de que encontraria a mulher, compraria na cidade algum brinquedo para os filhos e seria recebido alegremente por Pimenta,motivava-o para as batalhas diárias a favor da felicidade daquela casa, o que atenuava quaisquer dificuldades que pudessem surgir.
Abriu a porta da frente do casebre, respirando o ar fresco e úmido da manhã. Despediu-se em pensamento da mulher e dos dois filhos, dizendo para si o quanto os amava. Notou que o preá ainda permanecia por perto, talvez à procura de alimento, o que fez com que Sérgio lembra-se um pouco dos momentos de adversidades na infância. Procurou também pelo carcará, mirando atentamente o céu e as árvores secas, não demorando muito para que o localiza-se em um galho próximo. O pássaro, ao notar sua presença, o encarou por alguns segundos, até voltar novamente sua visão para o horizonte. Sérgio perguntava-se o que a ave, agraciada por tamanha habilidade ocular, estaria observando. Desejou que um dia pudesse ser como ela, de conseguir enxergar além de todas aquelas circunstâncias, de visualizar o que ninguém mais conseguiria, mirando sempre adiante, transpassando obstáculos.
O carcará examinou novamente o homem de maneira inquisitiva, quando este já virava as costas, deixando os devaneios para trás. Tinha que ir para a pequena cidade próxima, para o velho emprego. Sonharia depois, quando tivesse mais tempo.
O sol já havia se erguido consideravelmente, enquanto Sérgio sentia familiarmente sob os pés o chão árido do sertão. Caminhava a passos lentos em direção às batalhas daquele dia. Embora sonhasse com grandes coisas e lugares mundo afora, era grato por tudo que possuía, até mesmo por aquele lugar quase inóspito. Desse modo, caminhava aquela simples figura em todo aquele quadro natural de seca e quase total calor, não fosse por uma fina brisa vinda do leste que lhe afagou o rosto. Olhou na direção em que o ar viera e observou ao longe sua casinha.Sorriu com satisfação. Naquele momento, sentiu-se novamente feliz.