LESTINHO E O PENSAMENTO
Autor(a): C.R. Malaquias
Quando José nasceu foi para morrer. Ele não tinha família, ele não tinha
casa, ele não tinha saúde. Ele só tinha a si mesmo. Seu corpo e sua mente. Nem voz, o danado
tinha. Pobre até de alma, porque sem a gramática não poderia aquele humano magro,
maltrapilho e mal amado, ser subjetivado. Mas José não era nem tolo nem ignorante. E onde
lhe faltava palavra, transbordava pensamento. E onde lhe faltava alma, era pleno de desejo.
Tudo em José era vazio, mas José era o próprio preenchimento. Quando algo acontecia.
Acontecia a José o desejo. O desejo não era falta. Era força. E quanto mais José se fortalecia,
mais se tornava pensamento, e quanto mais José pensava mais se tornava movimento, e
quanto mais José se movia, mais se fazia vento…. Ele era produtor de si mesmo. E cada vez
que ele comia comunicava sua força à vida. E todo vez que ele não comeu, comunicou sua
força a Deus. Perseverou, o danado. Perseverou no mar, na areia e no mato. Perseverou no
corpo, na mente e no barco. Perseverou tanto que José era isso: esforço! Ele se esforçava para
encher a boca de peixe, mas quando o peixe faltava ele se esforçava para encher a boca de
pensamentos… Ora, os pensamentos daquele humano esforçado não significavam nada. E para
quem os vissem no calçadão da praia, não serviam de nada. Eles não reclamavam. Eles não
reivindicavam. Eles não ressentiam. Os pensamentos de José o produziam. Não era coisa do
protagonismo. Era coisa do vivo. Não era coisa de José. Era coisa do “lestinho”. Lestinho, era
o seu apelido. Lestinho, para os íntimos. “Lá vêm o José”, diziam, “com o seu corpo e com a
sua mente, com o seu desejo e com os seus pensamentos”. Lá vêm o vivo, eu diria. Não só
trabalho. Não só isso. Lestinho não trabalhava. Lestinho só desejava ir ao mar e voltar à mata.
Lestinho, mesmo faminto, maltrapilho e mal amado, sempre retornava. Ainda que para um
esforço cada vez maior.
Certa noite José não voltou. Conta-se que um vento contrário se misturou ao
Atlântico produzindo ondas que afundaram as embarcações. Os pescadores tombaram e os
peixes voaram. Os pescadores morreram e os peixes sobreviveram. Foi uma noite de avessos.
Uma noite de rajadas e raios. Uma verdadeira queda de braços. Uma tragédia. Pela manhã não
havia nem peixe nem pescador na praia. Só perda, prejuízo e palavra. Até de José, o magro,
sentiram falta. Tudo virado. Tudo afogado. Tudo engolido. Tudo morto e perdido. Nenhum
protagonismo. A potência do vento contrário ainda mais forte que a potência do nosso querido
“lestinho”. Quanta tristeza, meu Deus. Quanta gente que não comeu mas que também não
desejou. Quanta coisa que não morreu mas que também não pensou. Quanta gente que
reclamou, que reivindicou, que ressentiu. Quanta gente, meu Deus, que não se calou. Só falou
a dor. Só falou a dor. Só a dor falou. Era só palavra e dor, na areia da praia, na manhã em que
José não voltou. Nem vida, o danado tinha. Pobre até de memória, porque sem a cova não
poderia aquela alma, sem corpo e sem mente, ser ressignificada. Os humanos morreram. Os
nomes foram esquecidos. Mas a tristeza foi imortalizada pelo jornalismo. Outros humanos
morreram naquele dia, naquela praia. Outros humanos tombaram e se afundaram naquela
tristeza estampada. Alguns, mais fracos ou frágeis, foram suicidados. E só ficou no mar e só
voltou à mata o que era vivo. O vivo perseverava. Perseverou no mar, na areia e na mata.
Perseverou no corpo, na mente e no pensamento. O vivo não era memória. O vivo era desejo.
O vivo não era ideia. O vivo era força. Era o próprio acontecimento. Era o vivo produzindo a si
mesmo. E quanto mais produzia a si mesmo, mais se fazia vento…. E quanto menos a boca
falava, mais se fazia pensamento…
Certa noite a alegria voltou. Os pescadores retornariam do mar e os peixes
retornariam com os pescadores. A lua brilhava e o Atlântico cintilava. Chegava a hora de
voltar à mata. “Lá vêm o lestinho”, disseram, “sem o seu corpo e sem a sua mente, sem o seu
desejo e sem os seus pensamentos”. Lá vêm o vivo, eu disse. O vivo, aquele danado, sempre
retornava. Alegria, era o seu apelido. Alegria, para os íntimos. Não havia mais como distinguir
o humano e o vento, nem pela palavra nem pelo pensamento, pois ambos eram puro desejo.
Desejo de imanência. Desejo de perseverar na existência. E não fosse o vento contrário, o
barco afundado, o pescador morto, o vivo não seria tão precioso. Não só a vida. Não só isso. O
vivo não vivia. O vivo só desejava ir ao mar e voltar à mata. Ainda que para um esforço cada
vez maior. Um esforço em cada um de nós. Nem morte, o danado tinha. Ele não tinha a
gramática, ele não tinha a memória, ele não tinha a cova. Ele só tinha a si mesmo. Sua força e
sua produção. O vivo, ou seja, o vento. E como todos depois da tragédia se esforçaram, e
como todos naquela praia perseveravam, não deu no noticiário, mas todos voltaram a pensar,
pensar e ventar, isto é, sorrir…